O caminho dos Pecadores
Clássico moderno de Ryan Coogler explora as bases do cinema negro.

Pecadores (Sinners), estrelado por Michael B. Jordan e dirigido por Ryan Coogler — cineasta indicado ao Oscar por Pantera Negra e Creed — estreou nesta sexta-feira, 4 de julho, na Max, plataforma que em breve passará a se chamar HBO Max.
Embora o longa já tenha conquistado uma expressiva audiência e provocado discussões nas redes, há camadas conceituais e visuais que ainda merecem uma análise mais atenta. Trata-se, sobretudo, de refletir sobre as bases do cinema negro e como Pecadores dialoga com elas de maneira singular.
Horror Social
À primeira vista, o filme se insere em uma tendência já bastante reconhecível: o chamado horror social, subgênero do terror que utiliza metáforas fantásticas para abordar problemáticas reais, como o racismo, a desigualdade, o sexismo e outras formas de opressão sistêmica.
Esse tipo de abordagem se tornou cada vez mais popular nos últimos anos, em grande parte graças ao sucesso de obras como Corra! (Get Out), Nós (Us) e Não! Não Olhe! (Nope), todas dirigidas por Jordan Peele. Também fazem parte desse imaginário os experimentos audiovisuais provocadores de Donald Glover, seja na música como Childish Gambino e Bando Stone & The New World ou na série Atlanta.
Pecadores se encaixa nesse contexto, mas com uma proposta narrativa própria. Acompanhamos a trajetória de dois gêmeos afro-americanos, Fumaça e Fuligem (Smoke e Stack), gangsters que desafiam a ordem estabelecida ao roubar lucros da máfia italiana e irlandesa. Em uma reviravolta ousada, fazem um acordo com um fazendeiro da Ku Klux Klan para erguer um espaço seguro para a comunidade negra: uma casa noturna regada a bebidas e o melhor do blues.
O enredo se configura como uma verdadeira bomba-relógio. Os protagonistas parecem subestimar os perigos sociais que os cercam, e o espectador intui que o mal virá — talvez em forma metafórica, talvez não.
De fato, o mal chega. Vampiros descem dos céus para ameaçar a frágil utopia construída pela dupla vivida por Michael B. Jordan. Cabe ao público decidir o quanto essa ameaça sobrenatural pode ou não ser lida como alegoria. Essa abertura interpretativa é uma das forças do filme.
No entanto, o elemento fantástico — visualmente impactante e narrativamente chamativo — tem dominado boa parte das discussões, ofuscando outras qualidades riquíssimas da obra.
O Dinheiro de Al Capone
Ambientado nos Estados Unidos da década de 1930, Pecadores insere-se num contexto marcado pela vigência das leis de Jim Crow, que institucionalizavam a segregação racial. Neste cenário de opressão sistemática, não apenas a população negra, mas também diversos grupos de imigrantes marginalizados encontravam no crime uma forma precária de sobrevivência. É nesse universo de exclusão que se forja a figura clássica do gangster no cinema — especialmente o italiano, que migra para a "terra das oportunidades" e cria seu próprio império à margem da lei.
O subgênero de filmes de gângster nasce justamente nesse período histórico. Enquanto Al Capone contrabandeava álcool em plena Lei Seca e John Dillinger assaltava bancos, o diretor Howard Hawks lançava Scarface – A Vergonha de uma Nação (1932), obra que rapidamente foi apropriada pelo discurso estatal como instrumento de “regeneração” moral, servindo de advertência contra os chamados malfeitores.
Nas décadas de 1970 e 1980, o subgênero teve uma nova vida graças aos cineastas da Nova Hollywood. Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Brian De Palma consolidaram a estética da máfia no cinema, estruturando seus filmes com base em imigrantes brancos — sobretudo italianos —, com poucas variações étnicas, como irlandeses e caribenhos.
É nesse panorama histórico e cinematográfico que Pecadores realiza um gesto de deslocamento. Seus protagonistas, Fumaça e Fuligem, não apenas assumem vínculos diretos com Al Capone, mas também reproduzem o arquétipo clássico do gangster: homens perigosos que moldam o próprio destino com as próprias mãos. O filme carrega todos os signos do subgênero — o crime organizado, a ascensão violenta, a lealdade entre irmãos e o embate com forças institucionais. Por que, então, Pecadores é comumente lido como um filme de terror social e não como um legítimo filme de máfia?
A resposta, embora tenha relação com os estereótipos visuais e narrativos aos quais estamos habituados, ultrapassa essa lógica. Ryan Coogler parece interessado em um outro tipo de diálogo: ao invés de apenas inserir personagens negros em estruturas pré-existentes do gênero, ele revisita a gramática do primeiro cinema para sedimentar uma linguagem própria — híbrida, política e simbólica.
A estrutura do tempo e a montagem como discurso
Narrativamente, Pecadores adota uma estrutura elaborada. O filme começa in media res — no meio da ação — com uma sequência de forte impacto emocional: o jovem Sammy, filho de um pastor, aparece ensanguentado na capela de seu pai, diante do dilema entre seguir a moral religiosa ou dedicar-se à música profana. Esse instante funciona como ponto de tensão moral que atravessa toda a obra, revelando o conflito interno entre redenção e autossabotagem, fé e liberdade.
A partir daí, o longa se desdobra em um extenso flashback que reconstrói os eventos até aquele momento. Mas o que chama a atenção não é apenas a estrutura cronológica invertida, e sim o modo como Coogler incorpora uma técnica fundamental da linguagem cinematográfica: a montagem paralela.
Herdeiro direto do cinema clássico de D.W. Griffith, esse recurso consiste em apresentar duas cenas alternadas, sugerindo que ocorrem simultaneamente. Embora seu uso tenha se naturalizado ao longo das décadas — como em sequências telefônicas ou na clássica fórmula do herói correndo para salvar alguém em perigo —, Coogler a reinventa com outra função.
Em Pecadores, a montagem paralela deixa de ser apenas uma solução de ritmo ou tensão. Ela se transforma em propulsão para a narrativa, dramatizando os atravessamentos entre passado e presente. O confronto entre os tempos assume o peso de uma encruzilhada moral. A técnica não apenas organiza os eventos: ela os comenta, amplia e tensiona.
Imagens do Passado olham para o Futuro
O tempo é comentado a todo momento, inclusive na admirada cena musical que o blues rompe barreiras e evoca culturas ancestrais e futuras, como o guitarrista afrofuturista tocando ao lado do violão rústico de Sammy. Uma ideia sensacional, mas que nesse caso não é tão bem executada: Coogler é conhecido por fazer longos planos sequências em seus filmes e infelizmente, essa cena da festa não tem tanto virtuosismo. É mal filmada, mas pelo menos dá destaque à brilhante direção de arte da oscarizada Hannah Beachler.
Para o diretor, é muito mais sofisticada, essa retomada de um dispositivo de montagem do primeiro cinema e inseri-lo em um contexto negro contemporâneo, Coogler não está apenas referenciando a história do audiovisual. Ele está reescrevendo quem pode ocupar o centro dessa história. As imagens dos campos de algodão, camponeses, e céus intermináveis evocam também o cinema de Griffith como A Corner in the Wheat (1909) e Birth of a Nation (1915). Este segundo, que é por sua vez, um laudo do quão racista a cultura norte-americana é desde seu nascimento.
Agora, o que não posso afirmar com certeza, mas que me passa pela cabeça, é o quanto as cenas quentes de beijo e sexo de Pecadores, não são um tributo a Something Good – Negro Kiss (1898). Um curta metragem que mostra duas pessoas negras felizes se beijando, em uma época onde não era comum filmar beijos e muito menos pessoas negras. Mas como sabe-se muito pouco sobre esse curta, não temos como saber se passou pelo repertório de Ryan Coogler. É simbólico, no entanto, que essas imagens tenham resistido ao tempo e que hoje podemos dar um passo adiante na representação do desejo.
O filme não é apenas uma obra de horror social nem apenas um filme de gangster. É a interseção entre muitas influências — uma nova mitologia construída a partir dos escombros de uma tradição que sempre excluiu corpos negros do protagonismo.