Lorde em Virgin: despida de acessórios, roupa, pele, ossos e entranhas
Quarto álbum de estúdio da artista neozelandesa expõe seu processo de cura, transição de identidade e libertação emocional em beats densos e versos viscerais.
Virgin é o disco que nasce de uma artista em completa mutação, não só estética ou sonora, mas pessoal e espiritual. Aos 28 anos, Lorde entrega sua obra mais densa, íntima e confessional. Um trabalho sobre transformação radical, moldado pela dor e pelo amor, pela perda e pela libertação.
“Esse álbum me destruiu e forjou uma nova criatura em mim”, disse ela em carta aos fãs no Instagram. A frase não é metáfora casual, é testemunho de quem atravessou um luto, um término, o fim de um ciclo hormonal, e emergiu do outro lado com a garganta escancarada. O que a gente ouve em Virgin é isso: uma artista desarmada, mas consciente, que entendeu que sua verdade precisava ser cantada com a boca aberta, sem verniz, sem contenção.
Influenciada por autoras como Annie Ernaux, Rachel Cusk e Clarice Lispector, Lorde abriu caminho para um lirismo que toca o corpo e a mente. As letras são viscerais, mas nunca pesadas. “Broken Glass", por exemplo, última faixa a ser finalizada, trata da dismorfia corporal com uma franqueza rara, inspirada por “Grapefruit”, da Tove Lo. “Eu sentia que, se não conseguisse fazer essas declarações, minha garganta continuaria fechada” revelou (via @lordebrasill).
Não à toa, esse também é um álbum que se despoja do artifício. “Quando sentia uma virtuosidade se infiltrando, tentava extraí-la”, contou ao Estadão. Os arranjos são rudimentares, instintivos, quase primitivos. Mas isso não significa desleixo: Virgin é denso, coeso e meticulosamente bruto. Uma espécie de club-pop com nerve. Sons eletrônicos, texturas orgânicas e o calor de sintetizadores analógicos se misturam para dar corpo a faixas como “Man of the Year", “What Was That” e “David”. Cada canção flui para a próxima sem quebra, num fluxo contínuo de consciência.
A interpolação de “Suga Suga”, do Baby Bash & Frankie J, em “If She Could See Me Now", e o sample de “Morning Love”, de Dexta Daps, em “Current Affairs", mostram como Lorde ressignifica referências com uma assinatura pessoal. Mas o mais impactante mesmo é o modo como ela explora essas experiências de maneira confessional. Parece que ela está sentada ao seu lado, compartilhando confidências sobre aprovação materna (“Favourite Daughter”), sobre dividir intimidade com alguém que já se foi (“Current Affairs”), sobre metamorfose de identidade ("Man of the Year”) ou sobre o corpo em guerra consigo mesmo (“Broken Glass”).
A capa do disco, uma radiografia de uma pelve com DIU, fivela e zíper, reforça a proposta de vulnerabilidade crua e de uma espiritualidade tangível. A imagem, assinada por Heji Shin, é tão provocadora quanto simbólica.
Entre os produtores, um time de peso: Justin Vernon (Bon Iver); Buddy Ross (Frank Ocean, HAIM, Miley Cyrus); Jim-E Stack (Caroline Polachek, Bon Iver, Charli XCX); Dan Nigro (Olivia Rodrigo, Chappell Roan) e Dev Hynes (Blood Orange, Solange, Turnstile). E mesmo com tantos nomes, Virgin soa inconfundivelmente pessoal. Talvez por isso Lorde tenha chamado este trabalho de seu “renascimento”. Foi também o momento em que ela achou que tudo poderia acabar. “Achei que não tinha mais música em mim” — e escolheu cantar mesmo assim.
A sonoridade do disco é como um conforto para os ouvidos. O sentimento é que a Lorde nasceu pra fazer esse som. É a masterização de algo que ela revisita há anos, mas que nunca soa igual. Não é um disco pra qualquer momento ou situação. É um trabalho que, uma vez escutado, se torna um guia emocional. Você sabe quando vai precisar dele de novo. E talvez por isso ela tenha essa legião de fãs fiéis: porque não se trata de alimentar charts ou a indústria, mas de compartilhar experiência com cor, intenção e presença.
Seu quarto trabalho foi apresentado de maneira simples, mas confessional, talvez o mais feminino de todos. Acolhedor, vulnerável, com leves lembranças de seus discos anteriores, mas sem soar datado ou preso ao passado. Ao registrar o som do seu renascimento, Ella também permitiu que o mundo a visse totalmente despida de acessórios, roupa, pele, ossos e entranhas. Deixou-se ser olhada por inteiro. Nos entregou sua psique em transformação, sua feminilidade não binária, sua dor em fase de cura, sua música como documento do que ficou e do que virá.
A eloquência de Ella ao falar e cantar sobre suas dores é monumental. Existe uma lacuna imensa entre Melodrama e Virgin. Ambos lidam com assuntos complexos, cicatrizes profundas e dores difíceis de nomear, mas o fazem de formas distintas. Sua vulnerabilidade, aqui, é digna de reconhecimento: multifacetada, original, de uma artista que leva a vida a sério e que finalmente canta com a garganta livre.
Faixas destaque: "Man of The Year", “Hammer", “Favourite Daughter", “If She Could See Me Now", “David" e “Current Affairs”.