Entre o dream pop e o indie, Ivy desenhou uma terceira via
Em tempos de algoritmos e saturação estética, a música delicada do Ivy ainda oferece um refúgio sonoro e inspira Alvvays, Beach House e The Marías.

Em meio aos anos 90 de guitarras ruidosas e revoltas existenciais, uma banda formada por acaso em Nova York decidiu mirar em outra direção. O Ivy surgiu como quem abre uma janela num quarto abafado: ao invés de gritar, sussurrava. Em vez de confrontar o mundo, convidava à contemplação. A voz suave e ligeiramente acentuada de Dominique Durand — uma francesa recém-chegada aos EUA — flutuava sobre arranjos limpos, elegantes e discretamente melancólicos, compostos por Andy Chase e Adam Schlesinger. Formado em 1994, o trio trilhou um caminho particular dentro da cena indie, influenciado tanto por Françoise Hardy quanto por Pet Shop Boys. O resultado era um pop sem urgência, mas cheio de intenção.
Ivy nasceu em um contexto cultural peculiar: o grunge ainda se fazia presente, mas suas rachaduras já revelavam a necessidade de novas texturas. A morte de Kurt Cobain, naquele mesmo ano, simbolizava uma virada. Nova York se reconfigurava como epicentro do indie sofisticado e cosmopolita. Era o início de uma geração que preferia fitas cassete a rádios comerciais, e buscava trilhas sonoras que combinassem com cafés silenciosos, madrugadas introspectivas e afetos urbanos. O Ivy era tudo isso, e um pouco mais.
Eles não tentavam ser revolucionários. Pelo contrário, seu impacto vinha da modéstia. Como as fotos feitas por uma cybershot nos anos 2000, o som da banda carrega aquela estética suave, um tanto opaca, com brancos leitosos e cores ligeiramente desbotadas. Não é sobre nitidez, é sobre sensação. Ouvi-los era (e ainda é) como ver o mundo com menos saturação, com um charme que resiste ao tempo. A textura é o que encanta, seja nas linhas de teclado delicadas, nos refrões que parecem suspiros ou na produção que se recusa a brilhar mais do que a canção pede. Era o indie antes da explosão dos festivais, da cultura de hype, do algoritmo.
O som do Ivy era um equilíbrio raro: sofisticado sem ser pretensioso, pop sem ser descartável. Eles sabiam exatamente onde estavam pisando, entre o dream pop e o indie pop, com toques de synth-pop que davam brilho às suas composições. As influências eram explícitas, mas nunca soavam como cópia: The Smiths, Orange Juice, New Order, música francesa dos anos 60… tudo isso filtrado por um bom gosto calmo e uma produção que colocava cada elemento no lugar certo.
Dominique Durand, que nunca havia cantado profissionalmente antes da banda, virou o coração do projeto. Sua voz não precisava de grandes agudos ou explosões emocionais: bastava o timbre macio, a pronúncia francesa e a doçura contida para dar forma ao som do grupo. Adam Schlesinger e Andy Chase, ambos multi-instrumentistas e produtores, tinham o domínio técnico que sustentava a delicadeza das faixas, criando texturas que pareciam leves, mas escondiam uma arquitetura precisa.
A discografia da banda se manteve fiel à proposta estética, do primeiro álbum Realistic (1995) até o último All Hours (2011). Em especial, Apartment Life (1997) e Long Distance (2000) mostraram ao mundo como o Ivy podia ser ao mesmo tempo acessível e sofisticado. Músicas como “Edge of the Ocean” viraram queridinhas das trilhas sonoras, de Veronica Mars a Grey’s Anatomy, porque cabiam perfeitamente naquele espaço entre emoção e contemplação. Era música para cenas de fim de tarde, recomeços silenciosos, romances discretos. Um som que não impunha presença, mas criava atmosfera.
Hoje, ouvimos bandas como Alvvays, Beach House e The Marías, herdeiros modernos de um dream pop com vocais suaves, ambientações nostálgicas e arranjos melódicos, e percebemos como o Ivy, mesmo não sendo pioneiro do gênero, ajudou a suavizar os contornos do indie pop noventista, abrindo espaço para uma musicalidade mais etérea e emocional. Eles não inventaram o dream pop, mas ofereceram uma versão urbana e acessível dele, com um toque europeu e visualmente evocativo, que se tornou uma referência silenciosa para quem buscava beleza na sutileza.
A morte de Adam Schlesinger, em 2020, foi um baque irreparável. Não apenas pela perda de um músico brilhante que também assinou trilhas e hits em outras frentes criativas, mas por encerrar, de forma simbólica, o fio que ligava o Ivy ao presente. Ainda assim, sua essência permanece. Ouví-los hoje é uma experiência quase meditativa: um teletransporte para uma estética que talvez nunca mais consigamos reproduzir com tanta leveza e verdade.
Apesar do som tímido, o Ivy tem tudo para continuar ressoando nas gerações futuras. Seu legado está nos detalhes: na voz francesa sussurrada de Dominique, nos arranjos minimalistas, nas letras que falam de amor, distância e melancolia urbana com uma sofisticação que nunca soa pretensiosa. O mundo indie aprendeu com eles que há potência na suavidade, e que certos sentimentos não precisam gritar para serem ouvidos.
E talvez esse seja o maior presente que a banda deixou: a lembrança de um tempo mais calmo, mais intuitivo, mais azul acinzentado. Um lugar sonoro onde ainda dá pra repousar.