Antes do roteiro, vinha a música: o legado de The O.C.
Como uma série adolescente moldou o gosto musical de uma geração inteira com mixtapes, bandas ao vivo e cenas onde a música tocava mais alto que o roteiro.
Este texto contém spoilers de cenas marcantes de The O.C.
Pega a pipoca, senta aí — e vem entender como a trilha sonora de uma grande série moldou uma geração de adolescentes.
“We've been on the run
Driving in the sun
Looking out for number one
California here we come...”
— Phantom Planet
Califórnia, aqui vamos nós!
Impossível pensar em The O.C. e não ouvir mentalmente os primeiros acordes de “California”, do Phantom Planet. A música se tornou um hino atemporal, e sua escolha como tema de abertura da série foi uma coincidência. Josh Schwartz, criador da série, a escolheu depois de ver como ela funcionou no episódio piloto; traduzia perfeitamente o espírito de deslocamento, sonho e saudade que atravessava os personagens. Com imagens em câmera lenta da costa californiana e closes nos protagonistas, a vinheta se tornou tão emblemática quanto o conteúdo dos episódios — um convite melódico para entrar nesse universo.
Quando The O.C. — ou Um Estranho no Paraíso, como ficou conhecida no Brasil durante sua exibição no SBT — estreou em 2003, trouxe mais do que adolescentes ricos e ensolarados: dramas familiares de Orange County.
Muito além do sol californiano, The O.C. contava a história de Ryan Atwood, um adolescente problemático vindo de Chino, que era acolhido pela família Cohen em Newport Beach. Ao lado de Seth, Marissa e Summer, Ryan passa a viver os conflitos e privilégios da elite de Orange County, contrastando com sua própria origem. A série abordava temas como desigualdade social, identidade, pertencimento e amadurecimento — sempre embalada por uma trilha sonora marcante.
A série se consolidou como um fenômeno cultural também por sua trilha sonora — precisa, emocional e cuidadosamente pensada — que influenciou o gosto musical de uma geração inteira.
No Brasil, a série foi exibida em TV aberta, o que só aumentou o fascínio: fãs buscavam episódios na internet, gravavam trilhas em CD-R e comentavam tudo em fóruns e comunidades online. The O.C. ajudou a formar um novo tipo de espectador — mais conectado, sensível e atento às músicas que embalavam cada cena de coração partido em câmera lenta.
Mais do que acompanhar as cenas, a música em The O.C. construía camadas narrativas. Ela era personagem, atmosfera e, muitas vezes, o próprio enredo.
Como a música conduziu The O.C.
O criador da série, Josh Schwartz, queria que a música fosse um personagem importante dentro da trama. Foi assim que Alexandra Patsavas — que posteriormente também trabalhou em projetos como Gossip Girl, a saga Crepúsculo e As Vantagens de Ser Invisível — assumiu o cargo de supervisora musical, e junto com ela, Christopher Tyng, que foi responsável por compôr toda a música orquestral até a segunda temporada de forma impecável, nos dando a melhor música de créditos de um seriado, que transmitia exatamente o sentimento da série.
Ao contrário da maioria das produções da época, a seleção musical acontecia antes mesmo da finalização de alguns roteiros. Isso permitia que a música moldasse a atmosfera, o ritmo e, em muitos casos, o próprio desfecho emocional de cada episódio.
Esse processo fez de The O.C. uma série quase sensorial. Muitas cenas pareciam videoclipes — e não por acaso.
O dia em que choveu em Orange County.
Orange County é, praticamente, sinônimo de sol — e isso torna o 14° episódio da segunda temporada ainda mais memorável. É o único da série em que chove, e essa ruptura climática acompanha um momento icônico: Seth Cohen está no telhado, tentando arrumar a antena da TV, usando uma máscara do Homem-Aranha. Summer, que estava prestes a viajar com Zach no aeroporto, desiste e corre até a casa dos Cohen. A cena termina com um beijo — uma recriação direta da cena clássica entre Peter Parker e Mary Jane.
Ao fundo, toca um cover etéreo de “Champagne Supernova” — originalmente do Oasis — aqui reimaginado por Matt Pond PA, uma banda independente, um cover feito exclusivamente pra esse momento, reforçando o olhar alternativo da série até mesmo em decisões sutis. Uma versão melódica, sonhadora, quase flutuante. A escolha de usar um cover em vez da versão original diz muito: menos grandioso, mais íntimo.
Seth Cohen, o nosso primeiro crush indie alternativo
Boa parte da identidade sonora de The O.C. passa por Seth Cohen, o personagem que redefiniu o estereótipo do garoto nerd na cultura pop. Em vez de introspectivo e invisível, ele era irônico, fã de quadrinhos e, acima de tudo, apaixonado por música.
Seth idolatrava o Death Cab for Cutie e mencionava bandas obscuras como Bright Eyes e The Shins em diálogos que pareciam saídos de fóruns de indie rock. Sua paixão pela Summer se misturava com mixtapes e conversas sobre bandas, e seus gostos musicais se refletiam em todo o visual do personagem: o quarto coberto de pôsteres, a vitrola, os vinis empilhados.
A série o transformou em ícone de uma geração que descobria o mundo pelo Last.fm, pelas capas de álbuns no Fotolog e pelos torrents de MP3. Ele foi o elo entre o público e a curadoria musical da série, funcionando como uma ponte entre o roteiro e o ouvinte. Se a MTV deixava de tocar clipes, era Seth Cohen quem assumia a curadoria alternativa dos jovens em formação.
E foi também no universo de Seth que surgiu a The Bait Shop, casa de shows onde várias bandas reais se apresentaram ao longo da série, como se fizessem parte daquele universo fictício. Entre as que passaram por lá estão:
The Walkmen — T2E4 “The New Era”
The Killers — T2E4 “The New Era”
Modest Mouse — T2E20 “The O.C. Confidential”
Death Cab for Cutie — T2E20 “The O.C. Confidential” (nos bastidores)
Rilo Kiley — T2E21 “The Return of the Nana”
The Subways — T3E1 “The Aftermath”
Rooney — T1E15 “The Third Wheel”
A trilha sonora como memória coletiva
Os CDs oficiais lançados ao longo da série (The O.C. Mix 1 ao 6) pareciam feitos sob medida para quem gravava faixas em CD-R e escrevia à mão nomes de bandas em letras minúsculas.
Algumas faixas que marcaram a série e seus respectivos momentos:
“Dice” – Finley Quaye & William Orbit
T1E14 – “The Countdown”
Toca durante o Ano Novo, enquanto Ryan corre contra o tempo para chegar a tempo de beijar Marissa à meia-noite. Uma das cenas mais marcantes da série.“Hide and Seek” – Imogen Heap
T2E24 – “The Dearly Beloved”
Presente na chocante cena do final da segunda temporada, quando Marissa atira em Trey. A música viralizou por sua sonoridade única e ficou eternamente ligada a esse momento.“Forever Young” – Youth Group
T3E25 – “The Graduates”
Versão cover do clássico do Alphaville, aparece no final da terceira temporada e dá o tom nostálgico à despedida de personagens.
“If You Leave” – Nada Surf
T2E6 – “The Chrismukkah That Almost Wasn’t”
Trilha um dos términos entre Seth e Summer, reforçando o sentimento de frustração e confusão no relacionamento dos dois.“Wonderwall” – Ryan Adams (cover)
T2E20 – “The O.C. Confidential”
Toca no episódio em que Seth e Summer estão se reconectando na segunda temporada, trazendo uma atmosfera agridoce e nostálgica à cena.“Hallelujah” – Jeff Buckley
T1E27 – “The Ties That Bind”
T3E25 – “The Graduates”
Toca em dois momentos marcantes: no final da primeira temporada, quando Ryan deixa Orange County para voltar a Chino; e no final da terceira, durante a morte de Marissa. A melancolia da canção amplifica o peso emocional de ambas as cenas.

O que fica depois que o episódio acaba?
O maior legado de The O.C. talvez não esteja só nos personagens ou nos dramas adolescentes, mas na forma como sua trilha sonora nos atravessou. As músicas não só preenchiam as cenas — elas diziam o que a gente ainda não sabia nomear. Sentimentos confusos, silenciosos, adolescentes demais.
Com The O.C., aprendemos que uma música podia resumir uma história inteira, ou dizer tudo o que não cabia no diálogo. Ela moldou o nosso jeito de sentir, ouvir, buscar referências. Criou uma geração de ouvintes sensíveis, que encontrava consolo em uma faixa triste, que fazia mixtapes como forma de se declarar, que decorava letras como se fossem confidências.
A série abriu caminho para sucessoras como Grey’s Anatomy, Skins, Normal People e Euphoria — todas herdeiras da ideia de que trilha e narrativa não se separam. Que, às vezes, a música vem antes do roteiro. E antes mesmo da gente entender o que sentia.
Ah, e se depois de tudo isso bater a vontade de (re)ver The O.C. — ou viver tudo isso pela primeira vez com outros olhos e ouvidos —, a série completa está disponível no HBO Max. Vale cada cena, cada silêncio e cada refrão.
Dear Summer, Love Seth.
Um mergulho no legado de The O.C. e sua trilha sonora que moldou uma geração: do beijo na chuva ao “Death Cab for Cutie”, da The Bait Shop ao último refrão.